Capítulo 11 — Os príncipes amparam a verdade


Um dos mais nobres testemunhos já proferidos pela Reforma, foi o protesto apresentado pelos príncipes cristãos da Alemanha, na Dieta de Espira, em 1529. A coragem, fé e firmeza daqueles homens de Deus, alcançaram para os séculos que se seguiram, a liberdade de pensamento e consciência. O protesto deu à igreja reformada o nome de Protestante; seus princípios são “a própria essência do protestantismo.” — D'Aubigné. GC 197.1


Uma época tenebrosa e ameaçadora havia chegado para a Reforma. Apesar do edito de Worms, declarando Lutero proscrito, e proibindo o ensino ou a crença de suas doutrinas, até ali prevalecera no império a tolerância religiosa. A providência divina repelira as forças que se opunham à verdade. Carlos V estava inclinado a aniquilar a Reforma, mas, muitas vezes, quando levantara a mão para dar o golpe, fora obrigado a desviá-lo. Repetidas vezes a imediata destruição de tudo que ousava opor-se a Roma parecia inevitável; mas no momento crítico os exércitos dos turcos apareciam na fronteira oriental, ou o rei da França, ou mesmo o próprio papa, cioso da crescente grandeza do imperador, contra ele faziam guerra; e, assim, entre a contenda e o tumulto das nações, a Reforma teve oportunidade de fortalecer-se e estender-se. GC 197.2


Finalmente, entretanto, os soberanos católicos coagiram seus feudos a que fizessem causa comum contra os reformadores. A Dieta de Espira, em 1526, dera a cada Estado ampla liberdade em matéria religiosa, até à reunião de um concílio geral; mas, mal haviam passado os perigos que asseguraram aquela concessão, o imperador convocou uma segunda Dieta a se reunir em Espira, em 1529, com o fim de destruir a heresia. Os príncipes deveriam ser induzidos, por meios pacíficos, sendo possível, a se colocarem contra a Reforma; mas, se tais meios falhassem, Carlos estava preparado para recorrer à espada. GC 197.3


Os romanistas estavam jubilosos. Compareceram em Espira em grande número, manifestando abertamente sua hostilidade para com os reformadores e todos os que os favoreciam. Disse Melâncton: “Nós somos o ódio e a escória do mundo; mas Cristo olhará para o Seu pobre povo e o preservará.” — D'Aubigné. Aos príncipes evangélicos que assistiam à Dieta foi até proibido que se pregasse o evangelho em sua residência. Mas o povo de Espira tinha sede da Palavra de Deus e, apesar da proibição, milhares se congregavam para os cultos realizados na capela do eleitor da Saxônia. GC 198.1


Isso apressou a crise. Uma mensagem imperial anunciou à Dieta que, como a resolução que concedia liberdade de consciência havia dado origem a grandes desordens, o imperador exigia fosse ela anulada. Este ato arbitrário excitou a indignação e alarma dos cristãos evangélicos. Disse um deles: “Cristo caiu de novo às mãos de Caifás e Pilatos.” Os romanistas tornaram-se mais violentos. Um católico romano, fanático, declarou: “Os turcos são melhores que os luteranos; pois eles observam dias de jejum, e os luteranos os violam. Se tivéssemos de escolher entre as Escrituras Sagradas de Deus e os velhos erros da igreja, deveríamos rejeitar as primeiras.” Disse Melâncton: “Cada dia, em plena assembléia, Faber lança alguma nova pedra contra nós, os evangélicos.” — D'Aubigné. GC 198.2


A tolerância religiosa fora legalmente estabelecida, e os Estados evangélicos estavam resolvidos a opor-se à violação de seus direitos. A Lutero, ainda sob a condenação imposta pelo edito de Worms, não era permitido estar presente em Espira; mas preencheram-lhe o lugar os seus cooperadores e os príncipes que Deus suscitara para defender Sua causa nessa emergência. O nobre Frederico da Saxônia, protetor de Lutero, fora arrebatado pela morte; mas o duque João, seu irmão e sucessor, alegremente aceitara a Reforma e, conquanto fosse amigo da paz, manifestara grande energia e coragem em todos os assuntos relativos aos interesses da fé. GC 198.3


Os padres pediam que os Estados que haviam aceito a Reforma se submetessem implicitamente à jurisdição romana. Os reformadores, por outro lado, reclamavam a liberdade que anteriormente lhes fora concedida. Não poderiam consentir em que Roma de novo pusesse sob seu domínio aqueles Estados que com grande alegria haviam recebido a Palavra de Deus. GC 199.1


Como entendimento foi finalmente proposto que onde a Reforma não se houvesse estabelecido, o edito de Worms deveria ser rigorosamente posto em execução; e que nos Estados “em que o povo dele se desviara e não poderia conformar-se com o mesmo sem perigo de revolta, não deveriam ao menos efetuar qualquer nova Reforma, não tocariam em nenhum ponto controvertido, não se oporiam à celebração da missa, não permitiriam que católico romano algum abraçasse o luteranismo.” — D'Aubigné. Essa medida foi aprovada na Dieta, com grande satisfação dos sacerdotes e prelados papais. GC 199.2


Se esse edito fosse executado, “a Reforma não poderia nem estender-se... onde por enquanto era desconhecida, nem estabelecer-se sobre sólidos fundamentos... onde já existia.” — D'Aubigné. A liberdade da palavra seria proibida. Não se permitiriam conversões. E exigiu-se dos amigos da Reforma de pronto se submetessem a essas restrições e proibições. As esperanças do mundo pareciam a ponto de se extinguir. “O restabelecimento da hierarquia romana... infalivelmente traria de novo os antigos abusos”; e encontrar-se-ia facilmente uma ocasião para “completar a destruição de uma obra já tão violentamente abalada” pelo fanatismo e dissensão. — D'Aubigné. GC 199.3


Reunindo-se o partido evangélico para consulta, entreolharam-se os presentes, pálidos de terror. De um para outro circulava a pergunta: “Que se poderá fazer?” Graves lances em relação ao mundo eram iminentes. “Submeter-se-ão os chefes da Reforma, e aceitarão o edito? Quão facilmente, nessa crise, em verdade tremenda, poderiam os reformadores ter argumentado consigo mesmos de maneira errônea! Quantos pretextos plausíveis e boas razões poderiam ter encontrado para a submissão! Aos príncipes luteranos era garantido o livre exercício de sua religião. O mesmo favor era estendido a todos os seus súditos que, anteriormente à aprovação daquela medida, haviam abraçado as idéias reformadas. Não deveria isto contentá-los? Quantos perigos não evitaria a submissão! Em quantos acasos e conflitos desconhecidos não haveria a oposição de lançá-los? Quem sabe que oportunidades poderá trazer o futuro? Abracemos a paz; agarremos o ramo de oliveira que Roma apresenta e curemos as feridas da Alemanha. Com argumentos semelhantes a estes poderiam os reformadores ter justificado a adoção de uma conduta que, com certeza, em não muito tempo resultaria na total destruição de sua causa. GC 199.4


Felizmente consideraram o princípio sobre o qual aquele acordo se baseava, e agiram com fé. Qual era o princípio? Era o direito de Roma coagir a consciência e proibir o livre exame. Mas não deveriam eles próprios e seus súditos protestantes gozar de liberdade religiosa? Sim, como um favor especialmente estipulado naquele acordo, mas não como um direito. Quanto a tudo que daquele acordo se exteriorizava, deveria governar o grande princípio da autoridade; a consciência estaria fora de seus domínios; Roma era juiz infalível e deveria ser obedecida. A aceitação do acordo proposto teria sido admissão virtual de que liberdade religiosa se devesse limitar à Saxônia reformada; e, quanto ao resto todo da cristandade, o livre exame e a profissão da fé reformada seriam crimes, e deveriam ser castigados com a masmorra e a tortura. Poderiam eles consentir em localizar a liberdade religiosa? admitir a proclamação de que a Reforma fizera seu último converso? que conquistara seu último palmo de terra? e que, onde quer que Roma exercesse seu domínio naquela hora, ali deveria perpetuar-se esse domínio? Poderiam os reformadores alegar que eram inocentes do sangue daquelas centenas e milhares que, em conseqüência desse acordo, teriam que perder a vida nas terras papais? Isto seria trair, naquela hora suprema, a causa do evangelho e das liberdades da cristandade.” — Wylie. Antes, sacrificariam eles “tudo, mesmo os domínios, a coroa e a vida.” — D'Aubigné. GC 200.1


Rejeitemos esse decreto”, disseram os príncipes. “Em assuntos de consciência, a maioria não tem poder.” Os delegados declararam: “É ao decreto de 1526 que devemos a paz que o império goza: sua abolição encheria a Alemanha de perturbações e divisão. A Dieta não tem competência para fazer mais do que preservar a liberdade religiosa até que o concílio se reúna.” — D'Aubigné. Proteger a liberdade de consciência é dever do Estado, e isto é o limite de sua autoridade em matéria de religião. Todo governo secular que tente legislar sobre observâncias religiosas, ou impô-las pela autoridade civil, está a sacrificar o próprio princípio pelo qual os cristãos evangélicos tão nobremente lutaram. GC 201.1


Os católicos romanos decidiram-se a derrubar o que denominaram “ousada obstinação.” Começaram procurando ocasionar divisões entre os sustentáculos da Reforma, e intimidar a todos os que não se haviam abertamente declarado em seu favor. Os representantes das cidades livres foram finalmente convocados perante a Dieta, e exigiu-se-lhes declarar se acederiam aos termos da proposta. Pediram prazo, mas em vão. Quando levados à prova, quase a metade se declarou pela Reforma. Os que assim se recusaram a sacrificar a liberdade de consciência e do direito do juízo individual, bem sabiam que sua posição os assinalava para a crítica, a perseguição e condenação. Disse um dos delegados: “Devemos ou negar a Palavra de Deus, ou — ser queimados.” — D'Aubigné. GC 201.2


O rei Fernando, representante do imperador na Dieta, viu que o decreto determinaria sérias divisões a menos que os príncipes pudessem ser induzidos a aceitá-lo e apoiá-lo. Experimentou, portanto, a arte da persuasão, bem sabendo que o emprego da força com tais homens unicamente os tornaria mais decididos. “Pediu aos príncipes que aceitassem o decreto, assegurando-lhes que o imperador grandemente se agradaria deles.” Mas aqueles homens leais reconheciam uma autoridade acima da dos governantes terrestres, e responderam calmamente: “Obedeceremos ao imperador em tudo que possa contribuir para manter a paz e a honra de Deus.” — D'Aubigné. GC 201.3


Na presença da Dieta, o rei finalmente anunciou ao eleitor e a seus amigos que o edito “ia ser redigido na forma de um decreto imperial”, e que “a única maneira de agir que lhes restava, seria submeter-se à maioria.” Tendo assim falado, retirou-se da assembléia, não dando aos reformadores oportunidades para deliberar ou replicar. “Sem nenhum resultado enviaram uma delegação pedindo ao rei que voltasse.” À sua representação respondeu somente: “É questão decidida; a submissão é tudo o que resta.” — D'Aubigné. GC 202.1


O partido imperial estava convicto de que os príncipes cristãos adeririam às Escrituras Sagradas como superiores às doutrinas e preceitos humanos; e sabia que, onde quer que fosse aceito este princípio, o papado seria afinal vencido. Mas, semelhantes a milhares que tem havido desde esse tempo, apenas olhavam “para as coisas que se vêem”, lisonjeando-se de que a causa do imperador e do papa era forte, e a dos reformadores fraca. Houvessem os reformadores confiado unicamente no auxilio humano, e teriam sido tão impotentes como os supunham os adeptos do papa. Mas, conquanto fracos em número e em desacordo com Roma, tinham a sua força. Apelaram “do relatório da Dieta para a Palavra de Deus, e do imperador Carlos para Jesus Cristo, Rei dos reis e Senhor dos senhores.” — D'Aubigné. GC 202.2


Como Fernando se recusasse a tomar em consideração suas convicções de consciência, os príncipes se decidiram a não tomar em conta a sua ausência, mas levar sem demora seu protesto perante o concílio nacional. Foi, portanto, redigida e apresentada à Dieta esta solene declaração: GC 202.3


Protestamos pelos que se acham presentes, perante Deus nosso único Criador, Mantenedor, Redentor e Salvador, e que um dia será nosso Juiz, bem como perante todos os homens e todas as criaturas, que nós, por nós e pelo nosso povo, não concordamos de maneira alguma com o decreto proposto, nem aderimos ao mesmo em tudo que seja contrário a Deus, à Sua santa Palavra, ao nosso direito de consciência, à salvação de nossa alma.” GC 202.4


Quê! Ratificarmos esse edito! Afirmaríamos que quando o Deus todo-poderoso chama um homem ao Seu conhecimento, esse homem, sem embargo, não possa receber o conhecimento de Deus?” “Não há doutrina correta além da que se conforma com a Palavra divina. ... O Senhor proíbe o ensino de qualquer outra doutrina. ... As Sagradas Escrituras devem ser explicadas por outros textos mais claros; ...este santo Livro é, em todas as coisas necessárias ao cristão, fácil de compreender e destinado a dissipar as trevas. Estamos resolvidos, com a graça de Deus, a manter a pregação pura e exclusiva de Sua santa Palavra, tal como se acha contida nos livros bíblicos do Antigo e Novo Testamentos, sem lhe acrescentar coisa alguma que lhe possa ser contrária. Esta Palavra é a única verdade; é a regra segura para toda doutrina e de toda a vida, e nunca pode falhar ou iludir-nos. Aquele que edifica sobre este fundamento resistirá a todos os poderes do inferno, ao passo que todas as vaidades humanas que se estabelecem contra ele cairão perante a face de Deus.” GC 203.1


Por esta razão rejeitamos o jugo que nos é imposto.” “Ao mesmo tempo estamos na expectativa de que Sua Majestade imperial procederá em relação a nós como príncipe cristão que ama a Deus sobre todas as coisas; e declaramo-nos prontos a tributar-lhe, bem como a vós, graciosos fidalgos, toda a afeição e obediência que sejam nosso dever justo e legítimo.” — D'Aubigné. GC 203.2


Esta representação impressionou profundamente a Dieta. A maioria estava tomada de espanto e alarma ante a ousadia dos que protestavam. O futuro parecia-lhes tempestuoso e incerto. Dissensão, contenda, derramamento de sangue pareciam inevitáveis. Os reformadores, porém, certos da justiça de sua causa e confiando no braço da Onipotência, estavam “cheios de coragem e firmeza”. GC 203.3


Os princípios contidos nesse célebre protesto... constituem a própria essência do protestantismo. Ora, este protesto se opõe a dois abusos do homem em matéria de fé: o primeiro é a intromissão do magistrado civil, e o segundo a autoridade arbitrária da igreja. Em lugar desses abusos, coloca o protestantismo o poder da consciência acima do magistrado, e a autoridade da Palavra de Deus sobre a igreja visível. Em primeiro lugar rejeita o poder civil em assuntos divinos, e diz com os profetas e apóstolos: ‘Mais importa obedecer a Deus do que aos homens.’ Na presença da coroa de Carlos V, ele ergue a coroa de Jesus Cristo. Mas vai mais longe: firma o princípio de que todo o ensino humano deve subordinar-se aos oráculos de Deus.” — D'Aubigné. Os protestantes haviam, demais, afirmado seu direito de livremente proferir suas convicções sobre a verdade. Não haveriam de crer e obedecer somente, mas também ensinar o que a Palavra de Deus apresenta, e negavam ao padre ou magistrado, o direito de intervir. O protesto de Espira foi um testemunho solene contra a intolerância religiosa, e uma afirmação do direito de todos os homens de adorarem a Deus segundo os ditames de sua própria consciência. GC 203.4


A declaração tinha sido feita. Estava escrita na memória de milhares e registrada nos livros do Céu, onde nenhum esforço humano poderia apagá-la. Toda a Alemanha evangélica adotou o protesto como a expressão de sua fé. Por toda parte contemplavam os homens nesta declaração a promessa de uma era nova e melhor. Disse um dos príncipes aos protestantes de Espira: “Queira o Todo-poderoso que vos deu graça para confessá-Lo enérgica, livre e destemidamente, preservar-vos nessa firmeza cristã até ao dia da eternidade.” — D'Aubigné. GC 204.1


Houvesse a Reforma, depois de atingir certo grau de êxito, consentido em contemporizar a fim de conseguir favor do mundo, e teria sido infiel para com Deus e para consigo mesma, além de assegurar a sua própria destruição. A experiência desses nobres reformadores contém uma lição para todas as eras subseqüentes. A maneira de agir de Satanás, contra Deus e Sua Palavra, não mudou. Ele ainda se opõe a que sejam as Escrituras adotadas como guia da vida, tanto quanto o fez no século XVI. Há em nosso tempo um vasto afastamento das doutrinas e preceitos bíblicos, e há necessidade de uma volta ao grande princípio protestante — a Bíblia, e a Bíblia só, como regra de fé e prática. Satanás ainda está a trabalhar com todos os meios de que pode dispor, a fim de destruir a liberdade religiosa. O poder anticristão que os protestantes de Espira rejeitaram, está hoje com renovado vigor procurando restabelecer sua perdida supremacia. A mesma inseparável adesão à Palavra de Deus que se manifestou na crise da Reforma, é a única esperança de reforma hoje. GC 204.2


Apareceram então sinais de perigo para os protestantes; houve também sinais de que a mão divina estava estendida para proteger os fiéis. Foi por esse tempo que “Melâncton apressadamente conduziu pelas ruas de Espira, em direção ao Reno, seu amigo Simão Grynaeus, instando com ele a que atravessasse o rio. Grynaeus se achava espantado com tal precipitação. ‘Um ancião, de fisionomia grave e solene, mas que me era desconhecido’, disse Melâncton, ‘apareceu perante mim e disse: Dentro de um minuto, oficiais de justiça serão enviados por Fernando, a fim de prenderem Grynaeus.’” GC 205.1


Durante o dia Grynaeus ficara escandalizado com um sermão de Faber, um dos principais doutores papais; e, no final, protestou por defender aquele “certos erros detestáveis.” “Faber dissimulou sua ira, mas imediatamente se dirigiu ao rei, de quem obteve uma ordem contra o importuno professor de Heidelberg. Melâncton não duvidou de que Deus havia salvo seu amigo, enviando um de Seus santos anjos para avisá-lo. GC 205.2


Imóvel à margem do Reno, esperou até que as águas daquele rio houvessem libertado Grynaeus de seus perseguidores. ‘Finalmente’, exclamou Melâncton, vendo-o do lado oposto, ‘finalmente está ele arrancado das garras cruéis daqueles que têm sede de sangue inocente.’ Ao voltar para casa, foi Melâncton informado de que oficiais, à procura de Grynaeus, a haviam remexido de alto a baixo.” — D'Aubigné. GC 205.3


A reforma devia ser levada a maior preeminência perante as autoridades da Terra. O rei Fernando havia-se negado a ouvir os príncipes evangélicos; mas a estes deveria ser concedida oportunidade de apresentar sua causa na presença do imperador e dos dignitários da Igreja e do Estado, em assembléia. A fim de acalmar as dissensões que perturbavam o império, Carlos V, no ano que se seguiu ao protesto de Espira, convocou uma Dieta em Augsburgo, anunciando sua intenção de presidir a ela em pessoa. Para ali foram convocados os dirigentes protestantes. GC 205.4


Grandes perigos ameaçavam a Reforma; mas seus defensores ainda confiavam sua causa a Deus e se comprometiam a ser leais ao evangelho. Os conselheiros do eleitor da Saxônia insistiram com ele para que não comparecesse à Dieta. O imperador, diziam eles, exigia a assistência dos príncipes a fim de atraí-los a uma cilada. “Não é arriscar tudo, ir e encerrar-se alguém dentro dos muros de uma cidade, com um poderoso inimigo?” Outros, porém, nobremente declaravam: “Portem-se tão-somente os príncipes com coragem, e a causa de Deus está salva.” “Deus é fiel; Ele não nos abandonará”, disse Lutero. — D'Aubigné. O eleitor, juntamente com seu séquito, partiu para Augsburgo. Todos estavam cientes dos perigos que o ameaçavam, e muitos seguiram com semblante triste e coração perturbado. Mas Lutero, que os acompanhou até Coburgo, reviveu-lhes a fé bruxuleante cantando o hino, escrito naquela viagem: “Castelo forte é nosso Deus.” Ao som dos acordes inspirados, foram banidos muitos aflitivos sinais e aliviados muitos corações sobrecarregados. GC 206.1


Os príncipes reformados resolveram redigir uma declaração sistematizada de suas opiniões, com as provas das Escrituras, apresentando-a à Dieta; e a tarefa da preparação da mesma foi confiada a Lutero, Melâncton e seus companheiros. Esta Confissão foi aceita pelos protestantes como uma exposição de sua fé, e reuniram-se para assinar o importante documento. Foi um tempo solene e probante. Os reformadores mostravam insistência em que sua causa não fosse confundida com questões políticas; compreendiam que a Reforma não deveria exercer outra influência além da que procede da Palavra de Deus. Ao virem para a frente os príncipes cristãos a fim de assinar a Confissão, Melâncton se interpôs, dizendo: “Compete aos teólogos e ministros propor estas coisas; reservemos para outros assuntos a autoridade dos poderosos da Terra.” “Deus não permita”, replicou João da Saxônia, “que me excluais. Estou resolvido a fazer o que é reto sem me perturbar acerca de minha coroa. Desejo confessar o Senhor. Meu chapéu de eleitor e meus títulos de nobreza não são para mim tão preciosos como a cruz de Jesus Cristo.” Tendo assim falado assinou o nome. Disse outro dos príncipes, ao tomar a pena: “Se a honra de meu Senhor Jesus Cristo o exige, estou pronto... para deixar meus bens e vida.” “Renunciaria de preferência a meus súditos e a meus domínios, deixaria de preferência o país de meus pais, com o bordão na mão”, continuou ele, “a receber qualquer outra doutrina que não a que se contém nesta Confissão.” — D'Aubigné. Tal era a fé e a ousadia daqueles homens de Deus. GC 206.2


Chegou o tempo designado para comparecer perante o imperador. Carlos V, sentado no trono, rodeado de seus eleitores e príncipes, deu audiência aos reformadores protestantes. Foi lida a Confissão de sua fé. Naquela augusta assembléia, as verdades do evangelho foram claramente apresentadas, e indicados os erros da igreja papal. Com razão foi aquele dia declarado “o maior dia da Reforma, e um dos mais gloriosos na história do cristianismo e da humanidade.” — D'Aubigné. GC 207.1


Entretanto, poucos anos se haviam passado desde que o monge de Wittenberg estivera em Worms, sozinho, perante o conselho nacional. Agora, em seu lugar estavam os mais nobres e poderosos príncipes do império. A Lutero fora proibido comparecer em Augsburgo, mais estivera presente por suas palavras e orações. “Estou jubilosíssimo”, escreveu, “de que eu tenha vivido até esta hora, na qual Cristo é publicamente exaltado por tão ilustres pessoas que O confessam, em uma assembléia tão gloriosa.” — D'Aubigné. Assim, cumpriu-se o que dizem as Escrituras: “Falarei dos Teus testemunhos perante os reis.” Salmos 119:46. GC 207.2


Nos dias do apóstolo Paulo, o evangelho pelo qual estava preso foi assim levado perante os príncipes e nobres da cidade imperial. Igualmente, nesta ocasião, aquilo que o imperador proibira fosse pregado do púlpito, era proclamado em palácio; aquilo que muitos tinham considerado inconveniente que os próprios servos ouvissem, era com admiração ouvido pelos senhores e fidalgos do império. Reis e grandes homens constituíam o auditório; príncipes coroados eram os pregadores; e o sermão era a régia verdade de Deus. “Desde a era apostólica”, diz um escritor, “nunca houve obra maior nem mais magnificente Confissão.” — D'Aubigné. GC 208.1


Tudo quanto os luteranos disseram é verdade; não o podemos negar”, declarou um bispo romano. “Podeis refutar por meio de sãs razões a Confissão feita pelo eleitor e seus aliados?” perguntou outro, ao Dr. Eck. “Com os escritos dos apóstolos e profetas, não!” foi a resposta; “mas com os dos pais da igreja e dos concílios, sim!” “Compreendo”, respondeu o inquiridor. “Os luteranos, segundo vós o dizeis, estão com as Escrituras, e nós nos achamos fora delas.” — D'Aubigné. GC 208.2


Alguns dos príncipes da Alemanha foram ganhos para a fé reformada. O próprio imperador declarou que os artigos protestantes não eram senão a verdade. A Confissão foi traduzida para muitas línguas, e circulou por toda a Europa; e tem sido, em sucessivas gerações, aceita por milhões como a expressão de sua fé. GC 208.3


Os fiéis servos de Deus não estavam labutando sós. Enquanto “principados”, “potestades” e “hostes espirituais da maldade nos lugares celestiais” se coligavam contra eles, o Senhor não Se esquecia de Seu povo. Se pudessem seus olhos abrir-se, teriam visto uma prova da presença e auxílio divinos, tão assinalada como fora concedida aos profetas de outrora. Quando o servo de Eliseu mostrou a seu senhor o exército hostil que os cercava, excluindo toda possibilidade de escape, o profeta orou: “Senhor, peço-Te que lhe abras os olhos para que veja.” 2 Reis 6:17. E eis que a montanha estava cheia de carros e cavalos de fogo, o exército do Céu estacionado para proteger o homem de Deus. Desta maneira guardaram os anjos os obreiros na causa da Reforma. GC 208.4


Um dos princípios mais firmemente mantidos por Lutero era que não deveria haver recurso ao poder secular em apoio da Reforma, e, tampouco, apelo às armas para a sua defesa. Regozijava-se de que o evangelho fosse professado por príncipes do império; mas, quando se propusera unir-se em uma liga defensiva, declarou que “a doutrina do evangelho seria defendida por Deus somente. ... Quanto menos o homem se entremetesse na obra, mais surpreendente seria a intervenção de Deus em prol da mesma. Todas as precauções políticas sugeridas eram, em sua opinião, atribuíveis ao temor indigno e à pecaminosa desconfiança.” — D'Aubigné. GC 209.1


Quando poderosos adversários se estavam unindo para destruir a fé reformada, e milhares de espadas pareciam prestes a desembainhar-se contra ela, Lutero escreveu: “Satanás está exercendo a sua fúria; ímpios pontífices estão conspirando; e nós somos ameaçados de guerra. Exortai o povo a contender valorosamente perante o trono do Senhor, pela fé e oração, de modo que nossos inimigos, vencidos pelo Espírito de Deus, possam ser constrangidos à paz. Nossa principal necessidade, nosso trabalho principal, é a oração; saiba o povo que, no momento, se encontra exposto ao gume da espada e à cólera de Satanás, e ore.” — D'Aubigné. GC 209.2


Novamente, em data posterior, referindo-se à aliança sugerida pelos príncipes reformados, Lutero declarou que a única arma empregada nesta luta deveria ser “a espada do Espírito.” Escreveu ao eleitor da Saxônia: “Não podemos perante nossa consciência aprovar a aliança proposta. Morreríamos dez vezes de preferência a ver nosso evangelho fazer derramar uma gota de sangue. Nossa parte é sermos semelhantes a cordeiros no matadouro. Temos de tomar a cruz de Cristo. Seja Vossa Alteza sem temor. Faremos mais com as nossas orações do que todos os nossos inimigos com sua jactância. Tão-somente não sejam vossas mãos manchadas com o sangue de irmãos. Se o imperador exigir que sejamos entregues aos seus tribunais, estamos prontos a comparecer. Não podeis defender a nossa fé: cada um deve crer com seu próprio risco e perigo.” — D'Aubigné. GC 209.3


Do local secreto da oração proveio o poder que abalou o mundo na grande Reforma. Ali, com santa calma, os servos do Senhor colocaram os pés sobre a rocha de Suas promessas. Durante a luta em Augsburgo, Lutero “não passou um dia sem dedicar três horas pelo menos à oração, e eram horas escolhidas dentre as mais favoráveis ao estudo.” Na intimidade de sua recâmara era ele ouvido a derramar sua alma perante Deus em palavras “cheias de adoração, temor e esperança, como quando alguém fala a um amigo.” “Eu sei que Tu és nosso Pai e nosso Deus”, dizia ele, “e que dispersarás os perseguidores de Teus filhos; pois Tu mesmo corres perigo conosco. Toda esta causa é Tua, e é unicamente constrangidos por Ti que lançamos mãos à mesma. Defende-nos, pois, ó Pai!” — D'Aubigné. GC 210.1


A Melâncton, que se achava aniquilado sob o peso da ansiedade e temor, ele escreveu: “Graça e paz em Cristo — em Cristo, digo eu, e não no mundo. Amém. Odeio com ódio enorme esses extremos cuidados que vos consomem. Se a causa é injusta, abandonai-a; se a causa é justa, porque desmentiríamos as promessas dAquele que nos manda dormir sem temor?... Cristo não faltará à obra de justiça e verdade. Ele vive, Ele reina; que temor, pois, poderemos ter?” — D'Aubigné. GC 210.2


Deus ouviu os clamores de Seus servos. Deu aos príncipes e ministros graça e coragem para manterem a verdade contra os dominadores das trevas deste mundo. Diz o Senhor: “Eis que ponho em Sião a pedra principal da esquina, eleita e preciosa; e quem nela crer não será confundido.” 1 Pedro 2:6. Os reformadores protestantes haviam edificado sobre Cristo, e as portas do inferno não prevaleceriam contra eles. GC 210.3